Beijo Livre, de 1979: o grupo gay que iniciou o ativismo LGBT no DF

Coletivo fez história ao ser pioneiro na capital do Brasil e no movimento nacional. Arte e jornalismo eram armas

Publicado em 09/01/2021
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Schettino no lançamento do Beijo Livre, na boate Aquarius, com Osvaldo Gessner. Foto: Toninho Pinheiro

Por Welton Trindade

Ano de 2021! O Distrito Federal tem órgão LGBT na estrutura do Poder Executivo; conta com um deputado abertamente gay na Câmara Legislativa; possui lei que pune estabelecimentos que discriminem por orientação sexual; inclui no calendário oficial a parada do orgulho LGBT - a terceira mais antiga do Brasil. 

Ano de 1979! Um grupo de amigos vindos do jornalismo, das artes e do universo intelectual deu o caminho para esse 2021 com tantas conquistas. O grupo que plantou essa semente tem nome, Beijo Livre, e possui história por também ter feito história. 

Pioneirismo é o sobrenome e destino desse coletivo, que nasceu meses após a primeira formação ativista do Brasil, o Grupo Somos, em São Paulo, de 1978. Uma revolução arco-íris eclodia no País. O Beijo Livre colocou a capital brasileira de 19 anos de existência nesse front. 

Um desses agitadores é um dos maiores nomes da cultura do Distrito Federal, o jornalista, dramaturgo, ator, diretor e escritor Alexandre Ribondi. 

"Começamos com reuniões na casa onde morávamos, Romário Schettino e eu [foram namorados por 15 anos]. Em seguida, passamos a nos reunir aos domingos numa sala do SESC, com o apoio da diretora Maria Duarte - mulher importantíssima na história dos movimentos politicos, sociais e culturais de Brasília. Não me lembro da data exata do início", disse ao Guia Gay Brasília

A data ficou perdida, mas há um marco! O Bar Beirute, na 109 Sul, era o lugar para "entendidos" (como se chamavam gays na época) do DF se reunirem para dar pinta, rir, falar sobre arte, política, pegação e congêneres.

Só que não iam apenas quibes para essas bocas desbocadas! Ao se darem um beijo, fazerem carinho no outro, Romário e Alexandre foram interpelados por integrante do staff do bar para que não fizessem "aquilo".

Do beijo para o grito... pelo beijo! O grupo de amigos se revoltou e marcou volta ao local para se contrapor ao cerceamento! Fica para ser averiguado com mais precisão: pode ter sido esse o primeiro beijaço gay do Brasil. 

Esse Stonewall sem esquina foi a inspiração para o nome do coletivo e que embutia um sonho: Beijo Livre! 

Com esse episódio, o lugar virou o Gayrute! E só empoderamento? Não! Com a fama de ser point homossexual, o bar e restaurante - que existe até hoje - passou a ser evitado por gays que não queriam ser vistos como tais. 

De toda forma, o beijo destemido fez o concreto e o mato da capital do Brasil ganharem referência para outras pessoas entendidas (que buscavam muito merecer esse adjetivo no sentido primeiro da palavra). 

"Nas nossas reuniões, a gente lia as correspondências que chegavam ao Beijo Livre via caixa postal e preparava ações que pudessem repercutir de alguma forma na sociedade brasiliense", lembra Romário em carta que foi escrita por ele e lida por Alexandre na Parada do Orgulho LGBTS de Brasília de 2019, quando foram celebrados os 40 anos do grupo e os 50 anos da Revolta de Stonewall.

Quem desejava beijar livremente? Romário, que é jornalista e mora atualmente no Rio de Janeiro, enumera-os.

"Além de mim e do Alexandre Ribondi, tinha o Fernando Souza, que hoje é casado e mora em Londres com um gay inglês, Marcos Bagno, hoje linguista de renome nacional, Plínio Mósca, Toninho de Souza, fotógrafo; o ator e diretor Humberto Pedrancini, o produtor Cleber Loureiro etc. As mulheres vinham e saíam."

Pelas mãos deles, a arte e jornalismo viraram arma glitterizada em plena ditadura militar e a poucos quilômetros do centro desse poder, no conjunto de edifícios chamado Conic, coração de Brasília. 

Conta Alexandre: "Fizemos várias peças. Eram questões políticas. No início apresentávamos esquetes rápidas na boate Aquarius e que se chamavam Manga Preta Show, com direção do Humberto Pedrancini. Depois, Marcos Bagno e eu, com produção da Candango Produções Artísticas, escrevenos, dirigimos e interpretamos Crêpe Suzette - o Beijo da Grapette, no Teatro da ABO. Fez muito sucesso! Fernando Souza, que também era do Beijo Livre, fazia o cenário e o figurino, acompanhado de Maria Zilda."  

Houve lançamento do grupo na boate. Na foto acima - uma das raras do Beijo Livre -, Romário está no palco do local com o dono, Osvaldo Gessner. 

Houve um jornal, que levou o nome do grupo. Era mimeografado e pequeno. Dentre chamados políticos e textos "fechativos", destaque para um guia de locais gays da época com nome mais que inspirado.

"Essa seção era a 'Foda-se', isso em referência ao roteiro cultural do Jornal da Tarde (belíssima experiência gráfica) que se chamava Divirta-se. O Foda-se dava indicações sobre os melhores lugares para paquera e sexo. Havia, por exemplo, uns arbustos de folhagem roxa entre a Rodoviária do Plano Piloto e a Torre de TV que se chamava Motel Roxo", diz Alexandre. 

A folia também foi ocupada e devidamente chacoalhada pelo Beijo Livre, que criou grupo intruso num patrimônio carnavalesco do DF. O nome: Bunda do Delírio! 

"A Bunda do Delírio foi um 'enclave' no bloco Pacotão [o mais tradicional bloco de carnaval de Brasília]. Saiu por três anos, começando em 1980. Tínhamos um belíssimo estandarte. A proposta era, instintivamente, reforçar a presença homossexual nos eventos da cidade. Usávamos fantasias com nomes como Mamãe, Eu Sou Homossexual e Cleópatra Cachoeira Abaixo,  recorda.  

Outro importante marco foi a participação do coletivo brasiliense nos primeiros debates nacionais de ativismo homossexual, conforme registra o livro Na Trilha do Arco-Íris: Do Movimento Homossexual ao LGBT, de Regina Facchini e Júlio Assis Simões. 

A obra registra a participação do Beijo Livre no Encontro de Homossexuais Militantes feito em dezembro de 1979 em São Paulo. Apenas representantes de nove coletivos estavam aí. Beijo Livre era o único de fora do Sudeste. 

No ano seguinte, houve o I Encontro de Grupos Homossexuais Organizados (EGHO) e o I Encontro Brasileiro de Homossexuais (EBHO) em São Paulo. Beijo Livre estava presente nesses e nos seguintes.

O ano de 1980 ainda teve um dos maiores atos políticos do Beijo Livre. Imagine como seria hoje falar com o papa Francisco sobre respeito a homossexuais. Guarde essa sensação e tente sonhar em fazer isso 41 anos atrás com o chefe máximo da Igreja Apostólica Romana da época, João Paulo II. 

Você sonha. Beijo Livre fez! 

O coletivo escreveu carta e a fez chegar ao grupo ligado mais diretamente ao papa, que visitava Brasília. O ponto: respeito a homossexuais. E não pedindo, mas exigindo! 

Não há uma data específica, mas em algum dia ali por 1982, o Beijo Livre desmobilizou-se. Mas o desejo por liberdade de amar e desejar nunca mais voltou para o armário no DF! 


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