Editorial
Nas boas aulas de semiótica (basicamente, área de estudos dedicada a perscrutar o mundo dos significados e significantes), fala-se horas e horas do relativismo do que pode ser criado e percebido, mas, ao fim, sempre, se tem: a representação fiel em alto, médio ou até baixo grau de um cachorro leva-se ao cachorro. E elefante é outra coisa.
Essa flexibilidade coerente é mais que necessária no debate sobre orientação sexual no mundo em que existe Discord. Perceber nuances, sim. Não encerrar definições com muros altos, também. Entretanto é flexibilizar e não quebrar.
O conceito que se tem “por aí” – e é bem “por aí” mesmo - de assexualidade é exemplo hoje dos máximos do absurdo. E é preciso conversar sobre isso porque, como é tido hoje, ele fere outras orientações sexuais e até enfraquece a própria defesa da existência dela como tal.
Ora, a orientação sexual (e se quiser botar aí o afetivo para se ter afetivo-sexual) tem uma definição justa: gênero ou sexo (outro dia se conversa sobre) para o qual o desejo sexual e amoroso se “direcionam”.
Gosta-se, vislumbra-se relações românticas, tem-se impulsos sexuais com ninguém, homem apenas, mulher somente ou os dois. Ok?!
Viu que aqui não tem embutido o critério "como"? O que faz um homem ser heterossexual é ele gostar apenas de mulher, querer ter prazer sexual apenas com mulher.
Se, no digamos exercício dessa heterossexualidade, ele sente vontade de fornicar puramente às sextas ou somente em ambientes com ar condicionado Brastemp, isso não o faz menos ou mais hétero.
Orientação tanto não é como se vive o desejo afetivo-sexual que, veja só, pessoas virgens podem, por exemplo, serem bissexuais! Vualá! Portanto, a forma de experienciar e sentir o desejo tem nada a ver com a orientação sexual que se possui.
Sendo assim, é jocoso, por exemplo, localizar uma mulher que só gosta de fazer sexo com um homem e apenas depois de ter intimidade com ele como integrante do tal e ilimitado espectro da assexualidade.
“Ah, ela é demissexual. Oh, está no espectro da assexualidade. Oh, céus, ela é assexual! É do Vale!”, vêm vozes do X! E aí é o chamado à razão: a leitura do QR Code na catraca do Vale dá sinal vemelho! Pois é, ela é heterossexual mesmo! Demissexualidade não é orientação sexual!
O pensar por mais de 30 segundos nos leva a tal obviedade. Imagine que um casal de gays que depois de 10 anos tórridos de sexo selvagem em banheiros de postos de gasolina de beira de BR passa a não ter desejo sexual entre eles, mas continua a se amar e a ter um relacionamento romântico. Eles deixaram de ser gays por isso?
Uma mulher que só tem vontade ocasional de transar e quando a tem só a realiza com outra mulher, o que não a faz ser lésbica? Onde no manual da usuária da lesbianidade está escrito que tem de tesourar a cada 45 luas ou se perde a carteira de habilitação categoria C?
A confusão tumblerística entre orientação sexual e formas de senti-la e/ou vivenciá-la hoje é o pilar do que se quer chamar de assexualidade. E tal arbitrariedade prejudica a todas as pessoas, e, social e politicamente, a toda comunidade LGBT.
Sim, você é bissexual “mesmo” se você só tiver desejo sexual e não romântico por homens e vice-versa por mulher, viu? Sufixos sobre forma (hiper, demi, super, sub, supra, infra, swifties) não muda nada no seu crachá de entrada no Vale!
É o mesmo ao contrário. "Ah, sou homem e não faço sexo com minha namorada. Sou...". Se continuar a frase e quiser falar de orientação sexual, o complemento terá ser heterossexual ou bissexual. Ponto!
A própria psicologia tem nomes para as formas de viver a sexualidade, enfim, a orientação sexual: as parafilias. Aí estão, por exemplo, desejo específico por meias, por uniformes, por objetos de madeira, por homens de 46 anos adoradores de coruja!
Ah, importante não deixar para lá o tal "espectro assexual". Você acha que um homem casado com mulher que transa de vez em quando com homem está no espectro heterossexual? Ou ele é bissexual mesmo? Pois é! O tal "espectro assexual" sofre também desta moleza conceitual.
Da mesma forma que não existe espectro homossexual, nem bi nem hétero, não faz sentido haver um assexual!
Inconsistência aquela que impede ver a obviedade de que se a pessoa tem desejo sexual e/ou afetividade romântica para algum gênero ou sexo, independemente da forma em que se vive isso, ora, ora, ela é tudo menos assexual! Em tempo: "a" é prefixo para não. Assexual... Sim, é "não sexo". Ponto!
"Assexual" que faz sexo ou tem sentimento romântico é tão assexual quanto é hétero um homem casado com mulher e que transa com o goleiro do time de futebol dele às quartas-feiras!
A conceituação sem contradições e incoerências é a única forma de pessoas verdadeiramente assexuais (sem desejo sexual nem sentimento romântico nenhum em momento algum da vida) poderem se colocar como vivenciadoras dess orientação sexual e, enfim, atuar por visibilidade e demandas políticas e psicológicas, por exemplo.
Se tem tromba, não é cachorro. Se é cachorro, não tem tromba!