Brasil é país que mais mata LGBT? Por que é um erro achar isso

Suicídios, crimes sem esclarecimento ou passionais são tidos como motivados por ódio e inflam artificialmente estatística

Publicado em 19/01/2018
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Erros graves comprometem todo o relatório, que precisa mudar critérios para ter credibilidade

Por Welton Trindade - ativista LGBT desde 2000, jornalista, mestre em Comunicação e Semiótica, e sócio-proprietário da Guiya Editora, responsável pelo Guia Gay Brasília 

Nas últimas quase quatro décadas, anualmente, o Brasil e até o mundo têm informações sobre crimes fatais contra LGBT coletados de forma pioneira por uma das mais respeitadas entidades arco-íris nacional e internacionalmente: o Grupo Gay da Bahia (GGB). 

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Não é possível, arrisca-se dizer, encontrar estudo sobre a cidadania LGBT no Brasil sem se dar com citações a tais relatórios. Com certeza, aqueles levantamentos, feitos com base principalmente em notícias na mídia, são os documentos basilares da questão social de orientação sexual e identidade de gênero no País.  

Vem dessas páginas, e da verve do seu idealizador e ainda executor, o antropólogo Luiz Mott, o título impregnado no imaginário ativista, midiático, político e na produção científica sobre o Brasil: o país que mais mata LGBT no mundo! 

A gravidade da perda de uma vida que seja é altíssima. Indignação não tem número. Entretanto, como leitura de cenário, um estudo também não pode, por razões infinitas, ser baseado em outra gravidade: nas falhas em conceitos, assertividade e conclusões. 

A vítima final quando tal ocorre é a credibilidade. E é dessa questão que trata esse artigo crítico.

Vamos a uma amostra que escancara tal fissura desmoronante desse documento tão fulcral, mas que, há muito, coleciona e propaga erros. 

Tratemos da capital federal. São contabilizados oito crimes de ódio como ocorridos no DF no documento intitulado Pessoas LGBT Mortas no Brasil - Relatório 2017, há pouco divulgado e muito repercutido pela imprensa. 

O parágrafo de abertura: "445 LGBT+ (lésbicas, gays, bissexuais e transexuais) morreram no Brasil, (incluindo-se três nacionais mortos no exterior) em 2017 vítimas da homotransfobia: 387 assassinatos e 58 suicídios" (pág. 1). 

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Último post de Thiago antes do suicídio fala de desilusão amorosa. GGB trata morte como fruto de homofobia

Tratemos dos crimes listados no site Quem a Homotransfobia Matou Hoje, que compila diariamente mortes de LGBT e que, ao fim, gera o relatório.

Importante destacar que o próprio site revela as fontes das informações, com os devidos links. Nas linhas abaixo, pode haver tanto textos que deram base ao relatório quanto outros buscados para esse artigo. 

- Agatha Lios, travesti. Encontrada barbaramente esfaqueada em Taguatinga. Autoria? Como demonstra a imprensa, outras quatro travestis, que queriam demonstrar poderio do esquema de prostituição na cidade. 

- Robson Oliveira, heterossexual. Morto sob encomenda da companheira travesti, que teria descoberto uma traição. O ponto a ser negritado aqui: o crime, como o próprio site deixa evidente, ocorreu em Luziânia, cidade que não fica no DF, mas em Goiás. 

- Léo Britto, gay. Suicidou-se por motivo não evidenciado, ausência de informação que está no próprio site Quem a Homotransfobia Matou Hoje

- B.M.R, travesti. Notícia dá conta de que foi vítima de atentado juntamente com o suposto companheiro por um acerto de contas a respeito de pontos de prostituição. 

- Reginaldo Sodré Mendes, gay. Encontrado morto por esfaqueamento em casa, em Planaltina. Polícia tinha suspeitas de que o algoz e a vítima relacionavam-se afetiva ou sexualmente. Itens foram roubados.

- Mara Rúbia, lésbica. Morta por arma branca durante discussão com um homem com transtornos psicológicos. A reportagem que dá base ao registro no site afirma que não há motivação definida para o crime. E é justamente essa a base que o site gerador do relatório tem. 

- Thiago Camargo Leal, gay. Suicidou-se em Samambaia. O site fornece duas fontes: uma notícia que não trata da motivação e o último post de Thiago no Facebook, no qual ele dá a entender ter vivido uma desilusão amorosa. 

- Ricardo Pio Rodrigues, gay. Encontrato morto com um tiro no Parque da Cidade, área de pegação. Dias após o crime, polícia prendeu o namorado da vítima de mais de dois anos de relacionamento como principal suspeito. 

Resumamos: duas mortes por envolvimento em rede de prostituição, dois suicídios sem motivos aparentes ou sem evidência de terem sidos baseados em rejeição à homossexualidade, um morto pelo namorado, uma morte sem razão identificada, um latrocínio, e, por fim, um crime que não deveria estar como listado no DF pelo simples motivo de ter ocorrido em Goiás. E ainda de caráter passional.  

Antes das ideias conclusivas, uma definição que necessita estar posta: crime de ódio, pelo conceito mais aceito no mundo jurídico e de direitos humanos, é aquele quando o autor escolhe sua vítima tendo como motivação principal o fato de ela pertencer a um determinado grupo social, étnico, sexual, de gênero, geográfico etc.  

Ora, tente relacionar o conceito acima às características dos crimes considerados pelo GGB como "LGBT-fóbicos" (termo usado no relatório).

A impossibilidade, não se assuste, ela é a regra. 

A razão só nos leva a considerar, e ainda de forma movediça, que o crime contra Reginaldo seja o único que possa ter aspectos homofóbicos mais relevantes. 

Aqui está o resultado da fissura: de oito crimes propalados como de ódio ou frutos de efeitos diretos da discriminação, mal se consegue manter um na lista! Isso é grave! Demasiadamente grave. E compromete todo o relatório, pois é assim que ele se dá como fundamentação da primeira à última página.

Em resposta a questionamentos feitos por mim, Mott traçou considerações tais como a de que suicídios são inclusos por ser de conhecimento amplo o alto número de LGBT que se matam por rejeição social e famíliar, que a discriminação leva alguns a só encontrar trabalho na prostituição, e a crueldade de muitos crimes, aí notadamente latrocínios, ser alta por justamente haver repulsa dos autores contra LGBT. 

E ainda: relatórios de mortes de mulheres e negros, por exemplo, são muito abrangentes. Tal característica também deve ser aplicada aos registros de assassinatos de LGBT.

Não convence! 

Sim, muitos suicídios de LGBT são motivados por rejeição homo ou transfóbica, mas:
1) não podem se enquadrar no conceito de crime de ódio, que requer um algoz e uma vítima distintos; 
2) sim, podem ser considerados como fruto de discriminação, mas não postos juntos a assassinatos para não banalizar e simplificar definições;
3) nem todo suicídio de LGBT tem como base a rejeição social baseada em sexualidade e gênero! É preciso mesmo dizer que temos problemas financeiros, de saúde, amorosos, depressão como qualquer outra pessoa?
4) é má fé, no mínimo, enquadrar como fruto de discriminação um suicídio sem nenhuma informação a respeito da motivação. 

A discriminação como chaga social que leva muitos LGBT a não encontrar empregos e condições sociais dignas deve ser alvo constante de preocupação de toda sociedade, ainda mais nossa para com os iguais. A vulnerabilidade, entretanto, não pode ser tratada de forma tão elástica para enquadrar discriminação como, de novo em referência ao conceito de crime de ódio, motivação principal. 

E já respondendo ao "álibi" arranjado na comparação com relatórios de mortes de mulheres e negros toca-se também no ponto levantado no parágrafo anterior: nem toda morte de mulher é feminicídio, nem toda morte de um negro é racismo. E não, nem toda morte de um LGBT é discriminatória. 

O nome do relatório é isento (Pessoas LGBT Mortas no Brasil), mas tal insipidez acaba aí. E não só na citação do primeiro parágrafo acima e no próprio nome do site usado pelos autores, mas em praticamente cada linha do documento e na forma como é passado à imprensa: quer passar a ideia que todos os crimes relatados têm como base a rejeição por orientação sexual ou identidade de gênero. 

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Produtor morto no exterior e sem causa conhecida: relatório soma caso à cenário de homofobia no Brasil

Ao fim, o estudo não serve para mostrar quantos LGBT morreram (somos milhões e milhões na população) tampouco é fiel ao que a discriminação gera contra a vida. 

A pequena amostra cheia de equívocos classificatórios do Distrito Federal evidencia que esse importante instrumento sobre a situação de LGBT no Brasil feita pelo GGB precisa, de forma urgente, ter mais responsabilidade e fundamentos. Hoje, é leviano. Quer retratar uma realidade, mas a fabrica! 

As falhas do relatório chegam a ser tão absurdas que são contabilizadas mortes de LGBT no exterior como base para falar da situação de mortes do segmento no Brasil (em 2017 há três nesse molde)!

Mott defende essa inclusão por tais brasileiros terem emigrado para fugir do preconceito no Brasil. Há evidências disso? Não! E mesmo se houvesse, não demonstraria a situação criminal no País. A soma, por esses dois motivos, beira à zombaria. 

Se o Brasil é o País com mais crime de ódio contra LGBT, fica a séria dúvida, já que não há números corretos. Mas há uma certeza: é um dos países que mais precisam rever a forma como contabiliza esses crimes. 

Precisamos de relatório com esse objetivo - de mensurar mortes por ódio. Mas não é isso que nos é apresentado. O que se tem é estudo feito de forma descompromissada com a verdade. 

Portanto, por todos esses pontos levantados, não há de dar crença ao relatório do GGB! O Brasil que sai de suas páginas não é o Brasil real. Pelo demonstrado aqui, há clara contabilidade superdimensionada. 

Há saída! Base mínima para haver seriedade é trocar a pressa de catalogação dos casos - feita em grande número no dia seguinte à morte - pela correta investigação policial ou independente ou até julgamento judicial que indique de forma sólida a base no ódio contra LGBT. E, claro, parar de considerar qualquer morte de LGBT como fruto de exclusão social ou ódio.

Para frisar: cada indivíduo que se vai deve receber atenção nossa, como pessoas e como comunidade. Aqui não está a se negar essa missão humana e social. 

O que aqui está é: LGBT, ativistas ou não, a sociedade, o Poder Público, a mídia, e a ciência já possuímos muitos cadáveres frutos do ódio para nos preocuparmos e muitas razões para evitar que mais sucumbam. Não precisamos do sensacionalismo para nos movermos e lutarmos. 

E se há uma morte que pode ser desejada, necessária, ela é a do alarmismo! [Inicia-se o réquiem!]


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